Dois ovos fritos me encaram. Armando Falcão tem órbitas abissais e lá no fundo se instalam os ovos. Almoço no restaurante do Hotel Ouro Verde, no Rio, fevereiro de 1974. Quem sugeriu o encontro foi o general Golbery, articulador do governo Geisel cuja posse está marcada para 15 de março. Falcão será o próximo ministro da Justiça e ali estou para conversar sobre os rumos da censura que há quatro anos invade a redação de Veja. Segredou-me Golbery, futuro chefe da Casa Civil, que a intenção é retirá-la de vez, a censura, em nome da distensão, a palavra recentemente entrou no jargão político para indicar uma cautelosa abertura do sistema.
Nada disse aos patrões Civita a respeito do almoço porque só podem atrapalhar, se a reunião der bons resultados aí sim farei meu relato. A despeito do olhar avermelhado que brota das crateras como faísca antes da erupção, o futuro ministro mostra a cordialidade do velho amigo, embora eu o tenha conhecido faz pouco tempo, apresentado no ano anterior pelo então editor de Política de Veja, Elio Gaspari. Diz ele que o novo governo da ditadura vai acabar com a censura não somente em Veja mas também no Estadão e, portanto, no Jornal da Tarde, e nos jornais alternativos, ditos também nanicos.
Pergunto por que Folha, Globo, Jornal do Brasil nunca foram censurados. “Está claro, não é? Nunca deram motivos, sempre estiveram conosco.”
Conosco? Algo resmunga por dentro. Ainda assim, arrisco outra pergunta: “E o Estadão não estava com vocês?”
“O jornal da família Mesquita teve um papel importante antes da revolução e também logo depois. O problema é que os donos são muito ligados ao Lacerda, o Carlos acabou por se indispor conosco porque o poder não sobrou com ele, além disso os Mesquita se têm em alta conta, alta demais...”
Conosco... A palavra ensombrece a mesa. Que esperava, no entanto? Que Falcão não fosse um “revolucionário”? Ele deixa-se enfaixar pelo terno branco, azul a gravata, pretos os sapatos, lenço de cambraia no bolsinho do paletó. É gordo, nariz bulboso, as mãos sobre a mesa são dois sapos a engatilhar o salto, a pele do rosto também evoca o batráquio. Dele nada emana que inspire simpatia, e sou tomado pela sensação depressiva que a companhia gera na obrigação de dar ouvidos a um medíocre provinciano, empolado, e subdoloso, um sargento de repente promovido a capitão. Ele garante que a censura vive seus estertores, aos poucos sairá de todas as redações hoje atingidas, parece emocioná-lo a perspectiva de retirá-la do Estadão em janeiro do ano seguinte, no centenário da fundação do jornal.
E nós? “Você serão os primeiros, vou chamá-lo a Brasília logo depois da posse para acertar os ponteiros.” Saio do Ouro Verde e me reencontro no gabinete do ministro da Justiça em Brasília, dia 19 de março. Falcão trocou de terno, este azul-marinho, o lenço de cambraia é o mesmo. “Viu? Cumpri a promessa.”
É começo da semana, de volta a São Paulo não encontrarei mais os censores. “Vocês estão livres.”
“Isso não implica qualquer compromisso de nossa parte”, acentuo em tom manso.
“Óbvio, meu caro, nada pedimos em troca.”
O ministro vive seu papel com sofreguidão contida com parcimônia em um gesto ou noutro, no repentino tom de voz a ganhar ressonância de um dó de peito, sinto-o cioso do cargo em um esforço malogrado por quanto há de caricato no seu comportamento. E como se ele próprio estivesse a olhar a cena pelo buraco da fechadura, e a se comprazer com seu desempenho. Mas é de principiante.
Ando pelos corredores anódinos e intermináveis de Brasília, saio do Ministério da Justiça e vou ao Planalto e me percebo no mesmo, exato lugar, é a maldição do labirinto da capital sem as circunvoluções enganosas daquele de Creta, seu ardil reside na repetição exaustiva do trajeto ausente de mudanças de cenário, as mesmas portas, os mesmos lambris, os mesmos carpetes, os mesmos mármores. Alain Resnais aqui faria outro filme para contar Marienbad. As mesmas secretárias, os mesmos contínuos, as mesmas recepcionistas... Não procuro, porém, o Minotauro, no Planalto vou ao gabinete do chefe da Casa Civil, Golbery pediu-me para aparecer depois da audiência com Falcão.
“Tudo bem – relato –, a censura já se foi e ele até me deu, com dedicatória, o seu último livro.”
“Sei, sei – diz Golbery –, A Revolução Permanente, o Falcão é nosso Trotski.”
Dedicatória: “Ao Mino Carta, com o abraço de Armando Falcão.”
E subitamente estou na sala de Victor Civita, boss da Editora Abril, sete andares de concreto, alumínio e vidro às margens do Tietê, o rio humilhado carrega os dejetos da cidade e sobre a sua pele escura, impermeável, pantanosa, já vi passar carcaças de animais e armações de velhas poltronas tiradas do sótão. Começo de abril de 1974, segunda-feira. Mal chego à redação de Veja e recebo o apelo de Vici, como Civita Senior é chamado pelos Juniores. Desço ao sexto andar, reservado aos donos, perseguido a caminho pela sombra opressiva dos quadros que estupidamente se penduram nas paredes, Vici posta-se atrás de sua larga mesa em formato de feijão, de hábito em pose relaxada, agora de peito esticado à frente, prorrompente, mãos crispadas sobre os braços da poltrona giratória de couro, exclama, quase grito: “A censura voltou.”
Vivemos sem ela três semanas e no período eu me ative aos termos da conversa com Falcão: sem compromissos. Com cautela, contudo. Na primeira semana extraio da gaveta uma reportagem sobre os exilados graúdos, Arraes, Brizola e alguns outros. Texto olímpico, de puro registro dos fatos, sem qualificativos, ilustrado por uma foto de Brizola, de boné, agachado no meio do campo uruguaio, abraçado a um cordeiro. Passam incólumes, o bom pastor e os demais, embora me alcance por meio do diretor responsável da editora, Edgard de Silvio Faria, o eco de vagas queixas fardadas.
Na semana seguinte, no décimo aniversário do golpe, que também nós aceitávamos na escrita como revolução, fizemos o balanço em uma série de textos bastante comedidos, bem menos talvez, na visão de olhos sensíveis, que a própria capa, estampa em clima funeralesco um xis de ferro, sinistro, opressivo. Passaram as reportagens e o sombrio dez romano, mas o eco das lamentações ficou mais audível. Inclusive pela voz de trovejante locutor a transferir para a política toda a selvageria da cobertura futebolística, um certo Amaral Netto, dono de um largo espaço na tevê Globo. Definia-me como um envia-do do Kremlin para pregar marxismo-leninismo e enganar os Civita, família de argentários de ligações mafiosas.
Não era a primeira vez em que me via apontado como missionário soviético, já houvera um redator do Estadão, Lenildo Tabosa Pessoa, disposto a escrever uma suntuosa diatribe a meu respeito para me apontar à execração publica não somente por minhas incursões ideológicas, talvez nem de todo sinceras, e vinha aí a segunda bordoada, porque escolhidas por modismo próprio de um radicalismo pretensamente chique. Lenildo havia trabalhado na editoria Internacional sob a chefia de meu pai e, fundamentalista católico, não me perdoava por ter impedido que na hora da morte, 30 de outubro de 1964, o chefe recebesse a extrema-unção. Seis anos depois, Lenildo publicou sua minica, intitulada contudo “O Senhor Demetrio”, singular figura, ele dedicava poema de pornografia extrema a jovens redatoras.
Quatro anos depois, ao som hidrófobo das invectivas de Amaral Netto, em Veja precipitou a crise na terceira semana uma charge de Millôr Fernandes, na seção que ocupava duas páginas havia tempo, mostra um torturado crucificado em sua cela enquanto um balão sai de trás da porta para revelar: “Nada consta.” Da mesa de Vici ligo para o gabinete de Golbery. A ligação recorda as transmissões radiofônicas de jogos da seleção canarinho na África, mas ouço claramente o chefe da Casa Civil dizer “desta vez vocês passaram da conta”.
“Se a carapuça serve”, rosno. A ligação cai. A vigilância do diretor responsável da Abril desta vez não funcionou. Incumbido de analisar diariamente o material a ser publicado por Veja, Edgard de Silvio Faria aprovou a seção de Millôr. E a censura voltava com a exigência de receber textos e fotos em Brasília toda terça-feira.
Vici perdeu a pose inicial, parece um marionete atirado a um canto do bastidor. No fim da tarde volto a ligar para Golbery, digo: “Gostaria de ir a Brasília amanhã, para uma conversa com o senhor.”
“Sem dúvida, precisamos conversar, hoje de manhã a ligação estava muito ruim, não se ouvia cousa alguma...”
Aviso o patrão e ele me informa: chegou um telex da sucursal de Brasília, do diretor Pompeu de Souza, diz que, segundo Falcão, Mino é codinome. “Olha só que surpresa...”, digo. Colho do outro lado o silêncio do chairman of the board.
Peço três passagens de ida e volta à capital e uma limusine para me esperar no aeroporto, levo meus dois filhos, Manuela e Gianni, doze e dez anos. Ficam deslumbrados com a ideia de visitar a celebrada capital. Quanto à limusine, é simbólica do desafio, amplo, geral e irrestrito.
A secretária do ministro, dona Lurdinha, senhora de modos caseiros, redonda rola sobre o carpete sem perder o sorriso, chega-se ao meu ouvido, murmura: “Veio também o senhor Roberto Civita, quer ser recebido mas não tem hora marcada.” Não deixo que o tempo se estique inutilmente, tomo a visão panorâmica da antessala e vejo Arci, entalado em uma poltrona, com expressão perdida na paisagem da savana descortinada além das vidraças. “Que faz aqui?”, e ouço o meu próprio latido.
Evoco a cena, mas a memória ignara da cronologia me precipita em um tempo anterior em catorze anos, acabo de conhecer Roberto Civita, moço de vinte e quatro, tez avermelhada e brilhosa qual fosse untada, o nariz de bico esponjoso suporta óculos de lentes espessas, não demora para me perguntar qual é meu quociente de inteligência. Por insistência dele, a Abril exige antes da contratação que o candidato seja submetido a um exame psicotécnico. As altas esferas concederam que eu não o fizesse, mas ele acha oportuno conhecer minhas aptidões, concentradas em um número cabalístico. Confesso que nunca enfrentei o tal exame, de sorte a ignorar meu QI. Generoso, ele me comunica o dele, daí minha pergunta “e é satisfatório?”.
“Bem – soletra ele, sem piscar –, há um QI como o meu a cada vinte e cinco milhões de pessoas.”
O Brasil conta com setenta milhões de habitantes, deduzo, não sem ingenuidade: “Então só pode haver mais dois iguais a você.”
Atalha: “Pode, sim, mas também pode não haver e então eu seria o único, o cálculo leva em conta a população mundial.”
Ganhei a certeza da inconfiabilidade dos exames psicotécnicos e ao longo dos anos todo contato com Arci convalidou a percepção inicial, o ego do rapaz sempre bailou insopitável na demonstração de sua mediocridade. Agora, na antessala do gabinete ministerial, saboreio sua aflição a reduzi-lo a uma súbita humildade.
“Vici me contou que você viria, e eu gostaria...”
“Você não pediu audiência, não tem hora”, proclamo.
Ele insiste, à beira da imploração. O meu tom chama a atenção de Manuela e Gianni, encaram a cena sem entender o assunto, percebem porém que o pai está muito irritado enquanto o outro tem jeito de pedinte. Lurdinha traz uma laranjada para as crianças e avisa que o general está à espera. Admito: “Você entra comigo, mas se compromete a não abrir a boca.” Ele promete.
Na conversa que se segue no gabinete da Casa Civil o meu argumento é óbvio: Veja é uma revista semanal que encerra o trabalho na noite de sábado e vai às bancas às segundas-feiras; obrigá-la a submeter textos e fotos aos censores na terça significa inviabilizá-la. Pergunto a Golbery: “Os senhores pretendem que Veja simplesmente acabe?” Não, nada disso. “Então é preciso pôr em prática outro sistema.”
O chefe da Casa Civil entende e concorda. Diz: “Vá até o Ministério da Justiça, fale com Falcão, a Lurdinha já vai avisá-lo, diga a ele que vamos procurar uma saída até amanhã no máximo, a próxima edição tem de sair regularmente.”
Golbery fica de pé, hora da despedida. O general não conhecia o patrãozinho que até aquele momento cumpriu a promessa feita na antessala. E de supetão abre a boca: “General, se o senhor acha que devemos tomar alguma providência em relação ao Millôr Fernandes...”
Golbery fulmina-o: “Senhor Civita, não pedi a cabeça de ninguém.”
Há quem diga que Arci se parece com um cachorrão pelancudo, nunca como nesse instante a semelhança me pareceu tão evidente. Como cão enxotado do quarto sai de focinho a fazer cócegas ao carpete. Na antessala digo, com irrecorrível desprezo: “Bem que tinha pedido que você ficasse calado, mas você é um imbecil.”
Eis-me agora com Falcão, já ensaiei o encontro e de saída extraio do bolso minha cédula de identidade como o promotor que traz a prova do crime, e a jogo sobre a mesa ministerial: “Olhe, olhe, aqui sou Demetrio, Mino não é codinome, é apelido.” Vejo novamente ovos fritos em lugar de olhos.
De limusine, damos uma larga volta, com parada nos pontos de atração. No retorno de avião, conversamos como turistas, Gianni pergunta, no tom da incredulidade: “Mas é mesmo a capital?” Nunca viram cenário igual, que se pareça tão remotamente, ou que não se pareça por completo com uma cidade. “Vocês têm de entender – digo eu – que ela não foi bolada para ser habitada por seres humanos, é sob medida para os carros, em Brasília eles escancaram os capôs e dão risadas.” Meus herdeiros associam-se aos veículos automotores.
Estranha cidade, construída para induzir o País a segui-la como se conviesse ao Brasil preencher a solidão da savana. O rei distanciou-se dos súditos, às vezes me pergunto se deles não a incomodasse a proximidade, de sorte a preferir cometer seus pecados ao longe, protegidos por imensidões sem outra serventia. Um presidente muito louvado, Juscelino, aquele que a construiu, foi coerente, inaugurou uma indústria automobilística e de Brasília fez sua capital muito antes de ser a do Brasil. Décadas após, repetiu, com redobrada eficácia, outro presidente, Washington Luís, o qual asseverava “governar é construir estradas”.
Quando fomos colônia inglesa os albiônicos pretendiam tecer sobre o país-continente uma infinda e providencial teia ferroviária, o plano mal passou à execução e no relâmpago de um lustro enterrou seus trilhos.
Brasília é a capital do nosso intransponível delírio infanto-tropical, matriz da loucura foliônica e dos interesses rasteiros que nos moldam, mas esta parte da minha pensata omiti para Manuela e Gianni.
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Este relato é parte do livro "Brasil', lançado em 2013 pela editora Record. A obra mescla ficção com memórias de fatos reais (como o descrito acima).
fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/entreato-3943.html
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