segunda-feira, 12 de maio de 2014

Desocupações em SP e RJ desrespeitaram Constituição

ENTREVISTA
Desocupações da 'favela da Telerj' e Pinheirinho desrespeitaram a Constituição, diz defensor público
Ordens judicias desconsideram a preservação da dignidade dos ocupantes e também não exigem que os proprietários cumpra a lei
Paulo Cézar Pastor Monteiro - 10/05/2014 - 10h00

As reintegrações de posse na "favela da Telerj", no Rio de Janeiro, em abril deste ano e do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), em janeiro de 2012, são exemplos emblemáticos de como o Executivo e o Judiciário interpretam a Constituição de maneira invertida, priorizando o interesse privado em detrimento do público. Essa é a forma como o defensor público, Jairo Salvador de Souza, que atuou ao lado dos moradores que ocupavam o Pinheirinho, avalia as ocupações de áreas e espaços abandonados ou desocupados no Brasil.
Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil
Desocupação da Favela da Telerj em abril de 2013
Souza critica a visão de que as ocupações são “problemas” a serem solucionados com medidas judiciais e força policial, quando, deveriam ser objetos de políticas públicas eficazes. “As ocupações são tratadas como caso de polícia, evidenciando a ausência de capacidade do Poder Público em compreender que tais fenômenos revelam as consequências de uma política pública que privilegia a especulação imobiliária”, observa. 
Para o defensor público, as reintegrações de posse, em geral, seguem o mesmo roteiro. Pessoas que não tem onde morar ocupam espaços abandonados, que não cumprem função social, e o proprietário alega que seu bem está ameaçado e pede a reintegração, o Judiciário age rápida e eficazmente e o poder executivo, atráves da força policial, desaloja os “invasores”. Além disso, não são oferecidas alternativas para as pessoas desabrigadas. 
Dois anos e três meses depois de ser desocupado de forma truculenta pela PM paulista, o terreno do Pinheirinho, de 1,3 milhões de metros quadrados, onde viviam as cercas 1,9 mil famílias, ainda está sem nenhuma utilização e o prédio da Telerj, no Rio de Janeiro, desocupado há três semanas, também continua abandonado.
Última Instância: Como o senhor avalia o processo que levou a ordem judicial e a posterior ação de reintegração cumprida pela PM na chamada "favela da Telerj"?
Jairo Salvador de Souza: De acordo com as informações que obtivemos com colegas do Rio de Janeiro, mais uma vez, seguiu-se o roteiro tradicional das desocupações de áreas abandonadas, que não cumprem sua função social. A atuação eficaz e incrivelmente rápida do Judiciário, a mobilização imediata das forças de segurança pública, o dispêndio de vultosos recursos públicos, tudo para garantir que a área seja devolvida ao seu titular registral o mais rápido possível e continue abandonada. Mais uma vez, as ocupações são tratadas como caso de polícia, evidenciando a ausência de capacidade do Poder Público em compreender que tais fenômenos revelam as consequencias de uma política pública que privilegia a especulação imobiliária e desassistência. As ocupações não são causa, são consequências de tais políticas.
Quais as semelhanças com o Pinheirinho? Por que esse roteiro é sempre o mesmo, as quais interesse ele atende?
Souza: As semelhanças são muitas: o abandono da área há muitos anos, a incapacidade de diálogo e construção de soluções negociadas, a solução militar como única opção para resolução do problema, enfim, o caráter sancionatório da intervenção militar, para que sirva de exemplo e desestimule novas tentativas de ocupação, além da utilização de força desproporcional contra população desarmada.
Esse roteiro que temos visto em diversas desocupações em todo o Brasil faz parte de uma estratégia de criminalização dos movimentos sociais. Busca-se  transformar os ocupantes, em sua luta pela realização do direito constitucional à moradia, em verdadeiros inimigos da população. Talvez este roteiro venha se repetindo pela sua eficiência em resolver militarmente um problema social. Somente com modificações legislativas que impeçam despejos multitudinários sem salvaguardas é que poderemos imaginar uma mudança neste quadro.
É possível afirmar que casos como a da "favela da Telerj" e do Pinheiro desrespeitam a Constituição?
Souza: Entendo que nos dois casos, embora cada um na sua especificidade, houve vulneração à dignidade humana, epicentro axiológico da ordem jurídica. Há um falso antagonismo entre o direito à moradia e o direito à propriedade, já que nos dois casos, não se pode falar em exercício do direito à propriedade se não há propriedade. Os imóveis objetos das reintegrações estavam abandonados, sem cumprir qualquer função social. O cumprimento da função social não é mera restrição ao exercício do direito de propriedade, mas integra a própria noção de propriedade urbana. Não havendo função social, não há propriedade. Assim, entendo que as desocupações desrespeitaram a Constituição sim.
As decisões, via de regra, dão ganho de causa na defesa do direito a propriedade e as defesas são fundamentadas no direito à moradia. Por que quase sempre é o primeiro que ganha?
Souza: Apesar da Constituição Federal de 1988 ter explicitamente incorporado ao conceito de propriedade urbana a necessidade do cumprimento de sua função social, a cultura jurídica ainda é dominada pela visão patrimonialista e sagrada  da propriedade. Faz-se uma leitura invertida do ordenamento jurídico, subordinando, muitas vezes, o interesse público ao privado. Imóveis urbanos, muitas vezes completamente abandonados há vários anos, que não pagam tributos, são reintegrados aos seus titulares registrais e continuam abandonados, sem cumprirem sua função social. Há extrema complacência do Poder Público com tais situações. Poucos são os municípios que implementaram o IPTU progressivo ou sistemas de arrecadação de imóveis abandonados, conforme previsto no Código Civil. Por outro lado, a eficácia é invejável quando se trata de garantir o direito de propriedade a titulares registrais que sequer pagam seus impostos.
Quais as mudanças jurídicas ou políticas que poderiam impedir que casos assim se repetissem?
Souza: As ocupações e os assentamentos precários são consequências, não causas. O modelo de crescimento das cidades leva inevitavelmente a uma disputa pelo solo urbano, expulsando a população pobre das melhores áreas da cidade. Muitas vezes, não há alternativas habitacionais para população sem acesso ao mercado imobiliário. Assim, surgem as ocupações e os denominados assentamentos não formais. Esforços deveriam ser concentrados na formulação, implementação e acompanhamento de políticas públicas que enfrentem o problema.
Especificamente em relação às desocupações violentas, é necessária uma modificação legislativa que impeça a desocupação, antes da realização de audiência de justificação, inspeção judicial e inversão do ônus da prova, para que o titular registral comprove o cumprimento da função social. Outra medida necessária é o disciplinamento da ação policial. O uso indiscriminado de armas de baixa letalidade, as ações insidiosas, a ausência de participação dos representantes das comunidades no processo de planejamento do cumprimento da ordem são apenas alguns dos fatores que contribuem para a repetição sistêmica de violação dos direitos humanos.
A forma como as ações são realizadas as ações de reintegração de posse, frequentemente, são alvo de críticas e denúncias. Isso é sinal de que há algo de errado? O que precisaria mudar?
Souza: Penso que caberia ao Ministério Público acompanhar diretamente o cumprimento dessas ordens de reintegração multitudinárias. A disciplina da atuação das forças de segurança em processos de reintegração, com edição de normas operacionais, como a existente na Bahia, por exemplo, pode contribuir para mudar tal quadro. O que temos visto é uma série de irregularidades no cumprimento de ordens judiciais, tais como o uso "profilático" da violência, policiais sem identificação, uso indiscriminado de armas de baixa letalidade, táticas de estressamento e saturação dos desalojados, com danos psicológicos, agressões físicas e verbais desnecessárias, humilhações de pais na frente dos filhos, como tática de atuação, enfim, não podem os representantes da lei agirem em desconformidade com a lei.
No início do mês, a presidente Dilma Roussef foi a São José dos Campos e entregou um conjunto habitacional a ex-moradores do Pinheirinho. Qual a situação jurídica do caso?
Souza: Após dois anos da desocupação, finalmente foi autorizado o início das obras de construção das moradias para os desalojados do Pinheirinho. Embora o atendimento dos desalojados reproduza a política de segregação sócio-espacial, os moradores começam a ter uma perspectiva de reconstrução de suas histórias. Hoje, temos aproximadamente 1,1 mil processos judiciais em curso, postulando a reparação pelos danos materiais e morais que os moradores sofreram com a desocupação. Os processos estão em fase de instrução, não havendo prazo ainda para que sejam concluídos.
FONTE: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/70786/desocupacoes+da+favela+da+telerj+e+pinheirinho+desrespeitaram+a+constituicao+diz+defensor+publico.shtml?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Informativo_UI_12_05_14

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