C.S. foi vítima de violência sexual quando criança. Sofreu a segunda violência ao contar a história para seus pais e ser desacreditada
GABRIELA VARELLA E NINA FINCO
12/07/2016 - 09h00 - Atualizado 12/07/2016 09h00
C.S., de 22 anos, mora no interior de São Paulo. A infância foi
vivida na Bahia, mas foi roubada quando ainda tinha oito anos. “Lembro
até hoje quando ele tocou os dedos em mim, na minha vagina. Foi ali que
tudo começou.” Com a voz embargada, C.S. conta a história de sua
infância, assombrada pela violência sexual. O abusador
era próximo, alguém que deveria primar pela sua segurança. Marido de sua
avó, ele se aproveitava da intimidade familiar para violar a inocência
de C.S.
A violência — insinuações, toques sem permissão, sexo oral compulsório — seguiu até os 12 anos. Os abusos foram graduais até culminar em estupro, um ano antes. “As mulheres da minha família colocam corpo muito rápido”, diz. “Aos11 anos, eu coloquei peito, bunda. Comecei a ficar mocinha.” Num dia como outro qualquer, C.S. foi lavar os pratos numa fonte, no sítio da família, quando foi abordada pelo "avô". “Ele retirou a minha roupa, mesmo contra minha vontade. Eu estava começando a entender o que acontecia.” O homem a tocara e a forçara a fazer sexo oral nele. “Ele me puxou, prendeu a minha boca, retirou a minha roupa e penetrou em mim”, diz. “Tentei não fazer escândalo, porque sabia que ninguém ia ouvir. Quando ele terminou, mandou eu tomar banho, vestir minha roupa e subir sem falar para ninguém, porque senão ele me mataria.”
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O inferno só teve fim quando C.S. menstruou pela primeira vez. “Não sei se ele ficou com medo de que eu engravidasse”, diz. “Quando a minha mãe contou sobre a minha primeira menstruação para a minha avó, ele não queria mais vir atrás de mim, apesar de sempre me jogar cantada.” Nos anos seguintes, C.S. não contou para seus pais sobre o ocorrido. Apenas aos 15, após assistir a uma palestra sobre violência sexual na escola, ela compreendeu o que havia lhe acontecido. Naquele momento, deu-se conta de que não poderia comprovar o que aconteceu: a única saída foi colocar uma pedra em suas memórias.
Crescera numa família religiosa, o que agravava o medo de contar para os pais que o avô havia violado sua infância. Naquela época, C.S. se apegava à religiosidade para tentar afugentar o medo. “O que me fazia acreditar em algo melhor era a minha fé”, diz. Pouco após a palestra a que assistira, a jovem começou a namorar um garoto de sua idade. Preocupado com sua castidade, o pastor de sua igreja, que também era psicólogo, chamou-a para uma conversa sobre o assunto. “Ele disse que eu tinha de contar para os meus pais que eu não era mais virgem”, afirma. “Eu já estava num momento muito ruim e acabei falando o que tinha acontecido com o marido da minha avó. A primeira reação dele foi duvidar de mim.”
Naquele momento, C.S. sentiu como se estivesse sendo violentada novamente. Além de abrir novamente sua ferida, a jovem foi incentivada a continuar calada sobre o estupro. “Ele falou que eu tinha de esquecer aquilo, porque naquele momento ninguém ia conseguir provar e eu só ia causar um escândalo para a igreja.” Para ele, o "avô" já era uma pessoa diferente daquela que tinha cometido os abusos. C.S. foi excomungada da entidade por não ser mais virgem e seus pais foram informados pelo pastor que “algo muito grave havia acontecido na sua infância”.
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Pressionada pela família, a história acabou por vir à tona. No entanto, verbalizar o que havia acontecido não tornou as coisas melhores. “O meu pai começou a perguntar porque eu nunca tinha falado, qual foi o motivo de eu ter permitido tudo aquilo. Ele até hoje não acredita, pois acha que foi uma invenção minha para me livrar de que haviam descoberto que eu tinha perdido a virgindade e saído da igreja”, diz.
C.S. entrou para as estatísticas. Segundo os dados da pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde - Ipea, de 2011, 88,5% das vítimas são do sexo feminino e mais da metade têm menos de 13 anos de idade. A maioria dos casos de abuso também acontece em casa: 70% deles são cometidos por parentes, namorados e conhecidos das vítimas. “O meu pai queria ir até o marido da minha avó para perguntar se realmente aconteceu, mas óbvio que ele nunca diria. Depois disso, resolvi vir embora e nunca mais conversei com ele sobre isso.”
O tempo e a dúvida dos pais desencorajaram C.S. a fazer qualquer tipo de denúncia. Quase dez anos depois de os abusos terminarem, ela ainda guarda essa informação de sua família mais distante. “Muitas vezes, ao buscar ajuda, a vítima sofre uma nova violência: a de ser desacreditada”, afirma a psicóloga Odete de Oliveira Lisboa, que atende C.S. “Seu discurso e sofrimento é colocado em xeque, o que leva muitas vítimas a desistirem de ir adiante com a denúncia”. A promotora americana Suzy Boylan, no livro de Jon Krakauer, Missoula - O estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária (Cia das Letras, 472 páginas, R$ 59,90), afirma que o estupro é o único crime em que se presume que a vítima esteja mentindo, ao contrário de um roubo, por exemplo. “Se uma pessoa é assaltada num beco, nós ficaríamos céticos sobre o depoimento da vítima só porque não havia nenhuma testemunha ocular?”.
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Vez ou outra, C.S. ainda volta à cidade para visitar a família — mas evita frequentar a casa da avó. O contato com os pais acabou ficando cada vez mais distante. “Sinto que a minha mãe entende o que eu sinto, mas tenho medo de machucá-la. Ela já tem muitos problemas para aguentar”, diz. O abuso traz marcas de personalidade na jovem, que ficou mais calada ao longo dos anos. C.S. fala sem elevar o tom de voz, com cada ato supervisionado por si mesma para que não perca a calma durante o processo de reviver a violência. Atualmente, faz acompanhamento psicológico. “Como estava com uma revolta interna, fui procurar a psicóloga. Aquilo estava me atrapalhando na faculdade, no trabalho”, diz. “Eu não entendia quanto aquilo tinha me causado problemas posteriores. É necessário tratar e tocar naquela ferida. Porque senão vai ficar ali dentro a vida inteira e você vai sofrer.” Para Antonio Serafim, coordenador do Núcleo Forense do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), a descrença na vítima causa um impacto emocional muito grande: “É como se você tivesse um sangramento e, ao invés de suturar, provocasse ainda mais a ferida”.
A culpa demorou a abandoná-la e, por vezes, ainda insiste em se manifestar. “É difícil ter de provar algo de que você não teve culpa. Toda vez que eu conto pra alguém e a pessoa me julga, eu fico me sentindo muito mal, porque é como se despertasse algo que está morto lá dentro. É uma violência”, afirma. Para ela, a sociedade ainda não está preparada para lidar com vítimas de abuso sexual. “Falta um pouco de empatia de cada ser humano. Nós vivemos em uma cultura que nos ensina a achar que a mulher é um objeto.” C.S. acredita que um caminho para a superação é, além de procurar o equilíbrio psicológico, levar a informação para outras pessoas: “Luto para que as mulheres ouçam falar não só do feminismo, mas também de todas as informações de que nós precisamos para continuar”.
FONTE: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/07/o-pastor-me-disse-que-eu-tinha-de-esquecer-aquilo-diz-vitima-de-estupro.html
A violência — insinuações, toques sem permissão, sexo oral compulsório — seguiu até os 12 anos. Os abusos foram graduais até culminar em estupro, um ano antes. “As mulheres da minha família colocam corpo muito rápido”, diz. “Aos11 anos, eu coloquei peito, bunda. Comecei a ficar mocinha.” Num dia como outro qualquer, C.S. foi lavar os pratos numa fonte, no sítio da família, quando foi abordada pelo "avô". “Ele retirou a minha roupa, mesmo contra minha vontade. Eu estava começando a entender o que acontecia.” O homem a tocara e a forçara a fazer sexo oral nele. “Ele me puxou, prendeu a minha boca, retirou a minha roupa e penetrou em mim”, diz. “Tentei não fazer escândalo, porque sabia que ninguém ia ouvir. Quando ele terminou, mandou eu tomar banho, vestir minha roupa e subir sem falar para ninguém, porque senão ele me mataria.”
>> Ana Paula Brandão: “O desafio é fazer a vítima de abuso sexual quebrar o silêncio”
O inferno só teve fim quando C.S. menstruou pela primeira vez. “Não sei se ele ficou com medo de que eu engravidasse”, diz. “Quando a minha mãe contou sobre a minha primeira menstruação para a minha avó, ele não queria mais vir atrás de mim, apesar de sempre me jogar cantada.” Nos anos seguintes, C.S. não contou para seus pais sobre o ocorrido. Apenas aos 15, após assistir a uma palestra sobre violência sexual na escola, ela compreendeu o que havia lhe acontecido. Naquele momento, deu-se conta de que não poderia comprovar o que aconteceu: a única saída foi colocar uma pedra em suas memórias.
Crescera numa família religiosa, o que agravava o medo de contar para os pais que o avô havia violado sua infância. Naquela época, C.S. se apegava à religiosidade para tentar afugentar o medo. “O que me fazia acreditar em algo melhor era a minha fé”, diz. Pouco após a palestra a que assistira, a jovem começou a namorar um garoto de sua idade. Preocupado com sua castidade, o pastor de sua igreja, que também era psicólogo, chamou-a para uma conversa sobre o assunto. “Ele disse que eu tinha de contar para os meus pais que eu não era mais virgem”, afirma. “Eu já estava num momento muito ruim e acabei falando o que tinha acontecido com o marido da minha avó. A primeira reação dele foi duvidar de mim.”
Naquele momento, C.S. sentiu como se estivesse sendo violentada novamente. Além de abrir novamente sua ferida, a jovem foi incentivada a continuar calada sobre o estupro. “Ele falou que eu tinha de esquecer aquilo, porque naquele momento ninguém ia conseguir provar e eu só ia causar um escândalo para a igreja.” Para ele, o "avô" já era uma pessoa diferente daquela que tinha cometido os abusos. C.S. foi excomungada da entidade por não ser mais virgem e seus pais foram informados pelo pastor que “algo muito grave havia acontecido na sua infância”.
>> Cristiana Bento: a delegada contra os bárbaros
Pressionada pela família, a história acabou por vir à tona. No entanto, verbalizar o que havia acontecido não tornou as coisas melhores. “O meu pai começou a perguntar porque eu nunca tinha falado, qual foi o motivo de eu ter permitido tudo aquilo. Ele até hoje não acredita, pois acha que foi uma invenção minha para me livrar de que haviam descoberto que eu tinha perdido a virgindade e saído da igreja”, diz.
C.S. entrou para as estatísticas. Segundo os dados da pesquisa Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde - Ipea, de 2011, 88,5% das vítimas são do sexo feminino e mais da metade têm menos de 13 anos de idade. A maioria dos casos de abuso também acontece em casa: 70% deles são cometidos por parentes, namorados e conhecidos das vítimas. “O meu pai queria ir até o marido da minha avó para perguntar se realmente aconteceu, mas óbvio que ele nunca diria. Depois disso, resolvi vir embora e nunca mais conversei com ele sobre isso.”
O tempo e a dúvida dos pais desencorajaram C.S. a fazer qualquer tipo de denúncia. Quase dez anos depois de os abusos terminarem, ela ainda guarda essa informação de sua família mais distante. “Muitas vezes, ao buscar ajuda, a vítima sofre uma nova violência: a de ser desacreditada”, afirma a psicóloga Odete de Oliveira Lisboa, que atende C.S. “Seu discurso e sofrimento é colocado em xeque, o que leva muitas vítimas a desistirem de ir adiante com a denúncia”. A promotora americana Suzy Boylan, no livro de Jon Krakauer, Missoula - O estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária (Cia das Letras, 472 páginas, R$ 59,90), afirma que o estupro é o único crime em que se presume que a vítima esteja mentindo, ao contrário de um roubo, por exemplo. “Se uma pessoa é assaltada num beco, nós ficaríamos céticos sobre o depoimento da vítima só porque não havia nenhuma testemunha ocular?”.
>> Nana Queiroz e a coragem de enfrentar a cultura do estupro no Brasil
Vez ou outra, C.S. ainda volta à cidade para visitar a família — mas evita frequentar a casa da avó. O contato com os pais acabou ficando cada vez mais distante. “Sinto que a minha mãe entende o que eu sinto, mas tenho medo de machucá-la. Ela já tem muitos problemas para aguentar”, diz. O abuso traz marcas de personalidade na jovem, que ficou mais calada ao longo dos anos. C.S. fala sem elevar o tom de voz, com cada ato supervisionado por si mesma para que não perca a calma durante o processo de reviver a violência. Atualmente, faz acompanhamento psicológico. “Como estava com uma revolta interna, fui procurar a psicóloga. Aquilo estava me atrapalhando na faculdade, no trabalho”, diz. “Eu não entendia quanto aquilo tinha me causado problemas posteriores. É necessário tratar e tocar naquela ferida. Porque senão vai ficar ali dentro a vida inteira e você vai sofrer.” Para Antonio Serafim, coordenador do Núcleo Forense do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), a descrença na vítima causa um impacto emocional muito grande: “É como se você tivesse um sangramento e, ao invés de suturar, provocasse ainda mais a ferida”.
A culpa demorou a abandoná-la e, por vezes, ainda insiste em se manifestar. “É difícil ter de provar algo de que você não teve culpa. Toda vez que eu conto pra alguém e a pessoa me julga, eu fico me sentindo muito mal, porque é como se despertasse algo que está morto lá dentro. É uma violência”, afirma. Para ela, a sociedade ainda não está preparada para lidar com vítimas de abuso sexual. “Falta um pouco de empatia de cada ser humano. Nós vivemos em uma cultura que nos ensina a achar que a mulher é um objeto.” C.S. acredita que um caminho para a superação é, além de procurar o equilíbrio psicológico, levar a informação para outras pessoas: “Luto para que as mulheres ouçam falar não só do feminismo, mas também de todas as informações de que nós precisamos para continuar”.
FONTE: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/07/o-pastor-me-disse-que-eu-tinha-de-esquecer-aquilo-diz-vitima-de-estupro.html
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