Um dos mistérios mais obscuros da crise política que atingiu o país nos últimos meses (conforme relatado inúmeras vezes pela Intercept
) tem sido a ausência completa de pesquisas de opinião nos grandes
meios de comunicação e órgãos de pesquisa do país. Há mais de três
meses, no dia 17 de abril, a Câmara dos Deputados votou em favor de
enviar ao Senado Federal o pedido de impeachment da presidente
democraticamente eleita, Dilma Rousseff, resultando na investidura
temporária de seu vice-presidente, Michel Temer, como “presidente
interino”.
Desde a posse de Temer, o Datafolha – instituto de pesquisa utilizado pelo maior jornal do país, Folha de São Paulo
– não havia publicado pesquisas de opinião sobre o impeachment da
presidente, nem sobre o impeachment de Temer, e nem mesmo sobre a
realização de novas eleições para presidente. A última pesquisa do instituto
antes da votação do impeachment foi realizada em 9 de abril e apontava
que 60% da população apoiava o impeachment de Dilma, enquanto 58% era
favorável ao impeachment de Temer. Além disso, a sondagem indicou que
60% dos entrevistados desejavam a renúncia de Temer após o impeachment
de Dilma, e 79% defendiam novas eleições após a saída de ambos.

De forma surpreendente, mesmo três meses depois da entrada de Temer, a poucas semanas da votação final do impeachment de Dilma no Senado e com toda a atenção do mundo voltada para o Brasil por conta das Olimpíadas, nenhuma pesquisa havia sido publicada até o último final de semana. No sábado, a Folha de São Paulo anunciou uma nova pesquisa realizada pelo Datafolha que se demonstrou, ao mesmo tempo, surpreendente e positiva para o presidente interino, Michel Temer, além de apresentar uma grande variação com relação a pesquisas anteriores. A manchete principal impressa pela Folha, que rapidamente se alastrou pelo país como era de se esperar, dizia que metade do país deseja que Temer permaneça como presidente até o fim do mandato que seria de Dilma no final de 2018.
A iminência da votação final do impeachment torna esse resultado (50% dos brasileiros desejam que Temer conclua o mandato de Dilma) extremamente significativo. Igualmente importante foi a afirmação da Folha de que apenas 4% disseram não querer nenhum dos dois presidentes, e somente 3% desejam a realização de novas eleições. O artigo on-line de destaque no sábado:

O jornal também estampou o resultado na primeira página da edição impressa de domingo, a edição de jornal mais lida do país:

Esse resultado não foi apenas surpreendente por conta da ampla
hostilidade com relação a Temer revelada pelas pesquisas anteriores, mas
também porque simplesmente não faz sentido. Para começar, outras
perguntas foram colocadas aos eleitores pelo Datafolha sobre quem prefeririam que se tornasse presidente em 2018
e os resultados apontaram que apenas 5% escolheriam Temer, enquanto o
líder da pesquisa, o ex-presidente Lula, obteve entre 21% e 23% das
intenções de voto, seguido por Marina Silva, com 18%. Apenas 14% aprovam
o governo de Temer, enquanto 31% o consideram ruim/péssimo e 41%,
regular. Além disso, um terço dos eleitores não sabe o nome do
Presidente Temer. E, conforme observou um site de esquerda ao denunciar a recente manchete sobre a pesquisa da Folha como uma “fraude estatística”,
é simplesmente inconcebível que a porcentagem de brasileiros favoráveis
às novas eleições tenha caído de 60%, em abril, para apenas 3% agora,
enquanto a porcentagem da população que deseja a permanência de Temer na
Presidência da República tenha disparado de 8% para 50%.
Considerando todos esses dados, fica extremamente difícil compreender como a manchete principal da Folha
– 50% dos entrevistados querem que Temer continue como presidente até o
fim do mandato de Dilma – possa corresponder à realidade. Ela contradiz
todos os dados conhecidos. A Folha é o maior jornal do país e o
Datafolha é uma empresa de pesquisa de credibilidade considerável.
Ambos foram categóricos em sua manchete e gráfico principal a respeito
do resultado da pesquisa. Curiosamente, a Folha não publicou no
artigo as perguntas realizadas, nem os dados de suporte,
impossibilitando a verificação dos fatos que sustentam as afirmações do
jornal.
Manchete controvertida
Como resultado disso, a manchete – que sugere que metade da população
deseja a permanência de Temer na Presidência até 2018 – foi reproduzida
por grande parte dos veículos de comunicação do país e rapidamente
passou a ser considerada uma verdade indiscutível: como um fato
decisivo, com potencial para selar o destino de Dilma. Afinal, se
literalmente 50% do país deseja que Temer permaneça na Presidência até
2018, é difícil acreditar que Senadores indecisos contrariem a vontade
de metade da população.
Mas ontem (19/7/2016) , os dados completos e as perguntas complementares foram divulgados. Tornou-se evidente que, seja por desonestidade ou incompetência extrema, a Folha
cometeu uma fraude jornalística. Apenas 3% dos entrevistados disseram
que desejavam a realização de novas eleições, e apenas 4% disseram que
não queriam nem Temer nem Dilma como presidentes, porque nenhuma dessas opções de resposta encontrava-se disponível na pesquisa. Conforme observado pelo jornalista Alex Cuadros hoje,
a pergunta colocada deu aos entrevistados apenas duas opções de
resposta: (1) Dilma retornar à Presidência ou (2) Temer continuar como
presidente até 2018.
Portanto, fica evidente que os 50% de entrevistados não
disseram que seria melhor para o país se Temer continuasse até o fim do
mandato de Dilma em 2018: eles disseram apenas que essa seria a melhor
opção se a única alternativa fosse o retorno de Dilma. Além disso, simplesmente não
procede alegar que apenas 3% dos entrevistados querem novas eleições,
já que essa pergunta não foi feita. O que aconteceu foi que 3% dos
entrevistados fizeram um esforço extra para responder dessa forma frente
a opção binária entre “Dilma retorna” ou “Temer fica”. É impossível
determinar com base nessa pesquisa a porcentagem real de eleitores que
desejam a permanência de Temer até 2018, novas eleições ou o retorno de
Dilma. Ao limitar de forma infundada as respostas a apenas duas opções, a
Folha gerou as amplas distorções observadas nos resultados.
É totalmente injustificável, por inúmeras razões, que a pergunta
tenha sido colocada dessa maneira, excluindo todas as outras opções, com
exceção das duas respostas disponíveis. Primeiramente, o Supremo
Tribunal Federal já havia decidido
que a votação do impeachment de Temer deve prosseguir, visto que o
interino cometeu o mesmo ato que Dilma. Em segundo lugar, diversas
figuras de destaque político no país – incluindo o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa e a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, bem como um editorial da própria Folha
– se manifestaram em favor de novas eleições para presidente após o
impeachment de Dilma. Andréa Freitas, Professora de Ciência Política na
Unicamp, disse à Intercept: “como as novas eleições são uma opção viável, deveriam ter sido incluídas como uma das opções”.
E como Cuadros observou, pesquisas anteriores sobre Dilma e Temer,
incluindo a pesquisa de 9 de abril do Datafolha, perguntaram
explicitamente aos entrevistados a respeito de novas eleições. Portanto,
é difícil entender por que essa pesquisa do Datafolha omitiria
propositadamente o impeachment de Temer e as novas eleições, e limitar
as opções a “Dilma volta” ou “Temer fica”.
Mas o argumento a respeito de limitar as possíveis respostas a apenas
duas opções é simplesmente referente à metodologia da pesquisa. O que
aconteceu foi muito mais grave. Após ter decidido limitar as opções de
resposta dessa forma, a Folha não pode enganar o país fingindo
ter oferecido aos entrevistados todas as opções possíveis. Com a omissão
desse fato, a manchete e o gráfico principal do artigo da Folha se tornam enganosos e completamente falsos.
É simplesmente incorreto alegar (como fez o gráfico da Folha)
que apenas 3% dos brasileiros acreditam que “novas eleições são o
melhor para o país”, já que a pesquisa não colocou essa pergunta aos
entrevistados. E ainda mais prejudicial: é completamente incorreto dizer
que “50% dos brasileiros acreditam que a permanência de Temer seja
melhor para o país” até o fim do mandato de Dilma. Só é possível afirmar
que 50% da população deseja a permanência de Temer se a única outra opção for o retorno de Dilma.
Mas se outras opções forem incluídas – impeachment de Temer, renúncia
de Temer, novas eleições – é praticamente certo que a porcentagem de
brasileiros que desejam a permanência de Temer até 2018 caia
vertiginosamente. Como observou a Professora Andréa Freitas: “pode ser
que 50% da população prefira Temer a Dilma se essas forem as únicas
opções, mas parte desses 50% pode ser favorável a novas eleições. Com a
ausência dessa opção, não há como estabelecer que essas pessoas prefiram
o Temer”.
Isso não é trivial. Não se pode subestimar o
impacto dessa pesquisa. É a única pesquisa de um instituto com
credibilidade a ser publicada em meses. Sua publicação se deu exatamente
antes da votação final do impeachment no Senado. E contém a
extraordinária alegação de que metade do país deseja que o Michel Temer
permaneça na presidência até 2018: uma manchete tão sensacionalista
quanto falsa.
Considere como os resultados dessa pesquisa foram reproduzidos de
forma incansável – como era de se esperar – em manchetes de outros
grandes veículos do país:

No primeiro parágrafo: “Pesquisa do Instituto Datafolha realizada nos
dias 14 e 15 aponta que 50% dos brasileiros preferem que o presidente
interino Michel Temer continue no poder até 2018. A volta da presidente
afastada Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto foi a opção de 32% dos
entrevistados. Os 18% restantes não escolheram nenhum dos dois, disseram
não saber ou que preferiam novas eleições”.

Em entrevista à Intercept, Luciana Chong do Datafolha insistiu que foi a Folha,
e não o instituto de pesquisa, quem estabeleceu as perguntas a serem
colocadas. Ela reconheceu o aspecto enganoso na afirmação de que 3% dos
brasileiros querem novas eleições “já que essa pergunta não foi feita
aos entrevistados”. Luciana Schong também conta que qualquer análise
desses dados que alegue que 50% dos brasileiros querem Temer como
presidente seriam imprecisos, sem a informação de que as opções de
resposta estavam limitadas a apenas duas.
No fim de abril, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publicou seu ranking anual de liberdade de imprensa e o Brasil caiu para a 104ª posição,
em parte devido à “propriedade dos meios de comunicação continuar
concentrada nas mãos de famílias dominantes vinculadas à classe
política”. Mais especificamente, o grupo observou que “de forma pouco
velada, a mídia nacional dominante encorajou o povo a ajudar a derrubar a
Presidente Dilma Rousseff” e “os jornalistas que trabalham nesses
grupos midiáticos estão evidentemente sujeitos à influência de
interesses privados e partidários, e esses conflitos de interesse
permanentes são obviamente prejudiciais à qualidade do jornalismo
produzido”.

Uma coisa é a mídia plutocrática brasileira incentivar e incitar
abertamente a queda de um governo democraticamente eleito. De acordo com
a RSF, esse comportamento representa uma ameaça direta à democracia e à
liberdade de imprensa. Mas é muito diferente testemunhar a fabricação
de manchetes e narrativas falsas insinuando que uma grande parte do país
apoia o indivíduo que tomou o poder de forma antidemocrática, quando
isso não é verdade.
ATUALIZAÇÃO (feita pelos autores em 21/7/2016): Novas evidências surgiram mostrando que a fraude jornalística da Folha foi ainda pior do que pensávamos quando esse artigo foi publicado. A Folha respondeu a este artigo através de uma notícia.
FONTE: http://observatoriodaimprensa.com.br/monitor-da-imprensa/pesquisa-datafolha-fraude-informativa-ou-erro-de-avaliacao/
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